Era uma vez um mundo Preto e Branco. Que tinha horror ao que era diferente.
Como o Azul, o Vermelho e o Amarelo.
“Azulão!”, diziam os Brancos. “Vermelhado!”, xingavam os Pretos. “Amarelento!”, riam ambos. Era muito preconceito.
Por muitos anos o Azul, o Vermelho e o Amarelo sofreram em silêncio. Foram perseguidos e humilhados. Mortos em fogueiras e campos de concentração.
Até que uma revolta num bar mostrou pela primeira vez que Azuis, Vermelhos e Amarelos podiam se unir contra o preconceito Branco e Preto.
E assim foi.
Surgiu o Movimento AVA – Azul, Vermelho e Amarelo. E o Movimento cresceu, lutando pelo direito à diferença, mostrando que Azul não era pecado, Vermelho não era sujo, Amarelo não era doença. Um movimento que tinha tudo pra dar certo, pois lutava contra a injustiça e por um tratamento equalitário. No combate à avafobia.
Até os Verdes aparecerem.
Bom, o Verde sempre existira. Mas todos os consideravam uma mistura de Azul com Amarelo. Com certeza ele se encaixaria em um dos dois segmentos e se contentaria com isso.
Mas não. O Verde decidiu que o Azul via as coisas muito azuis e o Amarelo, muito amarelas. O Verde tinha uma visão diferente do problema – mais verde, obviamente. E sofria um outro tipo de preconceito. Era preciso que o Movimento se chamasse AVAV – Azul, Vermelho, Amarelo e Verde.
E assim foi.
Com o empoderamento do Verde, logo surgiram mais questionamentos. E o Laranja? Era um Vermelho-amarelado ou um Amarelo-avermelhado? Ou era simplesmente Laranja? E o Roxo?
Houve choro e ranger de dentes. Era inadmissível um Movimento que não contemplasse esses dois segmentos, se o Verde era contemplado. O Movimento deveria se chamar AVAVLR – Azul, Vermelho, Amarelo, Verde, Laranja e Roxo.
E assim foi.
Mas não sem protestos. Afinal eram poucos os Laranjas e Roxos. Justificaria incluí-los na sigla? Uns adotaram o AVAVLR. Outros maniveram-se fiéis ao AVAV. E outros já propunham uma volta ao bom e velho AVA.
“Pera lá,” disse o Vermelho. “Porque o Azul na frente? O Vermelho está no nível mais baixo do espectro visível e sempre foi oprimido pelos outros! O Movimento deve se chamar VAAV e não AVAV.” Houve chiadeira dos Azuis. Os Verdes, por outro lado, já renunciavam ao combate à avafobia e começava a citar a verdefobia em seus manifestos. Logo seguiram-se a laranjofobia e a roxofobia.
Multiplicaram-se os eventos AVAV, as paradas de orgulho VAAV, as caminhadas Verdes, os festivais de cinema AVAVLR, os meses da diversidade VAAVLR... O Dia Nacional de Combate à Avafobia, uma das vitórias do Movimento, era grafado pelos mais politicamente corretos de Dia Nacional de Combate à Avafobia, Verdefobia, Laranjofobia e Roxofobia. Ninguém entendia mais nada. A imprensa, alheia a essas brigas internas, chama tudo de AVA e pronto, apesar dos protestos. Surgiram outras siglas, baseadas em outras línguas: RGB, CMYK.
Foi quando o Azul-Claro começou a exigir um espaço próprio dentro do movimento. Afinal, os Azuis mais escuros tinham uma clara clarofobia e nunca pensavam nos tons mais suaves do espectro.
Foi a gota d'água.
O Movimento, que fora tão bem-sucedido no passado, começava a emperrar. Perdia-se um tempo precioso em discussões de segmentos e não no combate à avafobia. Reuniões sérias, de proposição de soluções a desafios importantes, empacavam na grafia da carta-manifesto: o título seria “Avafobia Mata!” ou “Avafobia, Verdefobia, Laranjofobia e Roxofobia Matam!”??
A sociedade em geral via a todos como aberrações. “É tudo Vermelhado mesmo!” Nem os próprios AVAVLR, os não-militantes, sabiam o que significava a sigla ou qual sigla era a mais em voga da vez. Potenciais aliados Brancos e Pretos eram constantemente corrigidos – às vezes, e deselegantemente, em público – e não entendiam o porquê. Não estavam lutando todos pela diversidade? Por que confundir tanto?
Era preciso fazer alguma coisa.
Foi chamado um grande Encontro pelo presidente Preto (o primeiro, depois de mais de um século de presidentes Brancos), exclusivamente para se discutir a questão AVAVLR. O presidente sabia das coisas, tendo vindo de um passado de militância.
“Companheiros,” discursou o presidente na abertura do evento, “É preciso sim reconhecer e respeitar as diferenças de cada segmento. Mas é fundamental que vocês, enquanto Movimento, encontrem e se concentrem naquilo que os une, não no que os diferencia.”
Isso ficou na cabeça de muita gente. E enquanto alguns continuavam a discutir as letrinhas ou quantas fobias diferentes cabem numa frase, esses outros passaram a buscar a tão sonhada união. Uma unidade na diversidade.
“O que somos TODOS?", "O que nos distingue da sociedade?”, "Temos algo em comum?", "Podemos expressar isso numa só palavra?", pensavam.
A resposta veio como um raio. Não ficou registrado quem foi o primeiro a dizer a frase em voz alta, mas ela logo corria o Movimento. “Somos CORES.”
Vermelho é uma COR. Azul é uma COR. Amarelo, Verde, Laranja, Roxo, Azul-Claro... CORES.
O Movimento passou a se chamar MOVIMENTO COLORIDO. E, como símbolo, foi escolhida a bandeira do arco-íris.
A União entre as CORES, um desejo antigo do Movimento, foi finalmente aprovada pelo restante da sociedade. Assim como a Criminalização da Corfobia. Em poucas gerações, Brancos e Pretos já aceitavam as CORES como parte de si.
E viveram todos felizes para sempre.
“O que somos TODOS?", "O que nos distingue da sociedade?”, "Temos algo em comum?", "Podemos expressar isso numa só palavra?"
Será que um dia seremos simplesmente CORES? Ou estamos fadados a ser eternamente um Movimento que não ousa (porque não sabe) dizer seu nome?
Deco Ribeiro